Sri Lanka

Sri Lanka

A vida do fotógrafo é feita de muitos momentos bons! A do fotógrafo de surf então, diria que é como viver dentro dos meus próprios sonhos. Mas nem tudo é água azul e sol brilhando. Quem vê os lugares que vamos, as fotos que fazemos, não imagina que muitas vezes por trás tem uma dor. E dessa vez doeu forte.

Era minha sétima vez nas Maldivas, num dos únicos projetos que ainda me fazem ir pra esse lugar: o Coolture Life. Idealizado pela Claudinha Gonçalves, participo desde a primeira edição na Costa Rica, em abril de 2019. Àquela época, o staff era composto só por nós duas! Vi o projeto crescer, como quem vê o filho da melhor amiga desenvolver e ganhar o mundo. O projeto é exclusivamente feminino, incluindo a equipe composta por ela, eu, mais uma câmera, a Coach de Educação Física e mídias sociais. No nosso barco, mais doze clientes mulheres, dispostas a evoluir o surf, conhecer um lugar novo, trocar, se abrir para algo novo e se permitirem passar por esse desafio. Essa edição foi bem especial, tanto como grupo quanto como ondas. Saí de lá super abastecida!

Não tenho o costume de estender para outro destino se não tiver trabalho, mas dessa vez me permiti: pedi minha passagem para doze dias depois, para conhecer um lugar novo e me desligar um pouco do surf. Pesquisei Vietnam, Tailândia, e Sri Lanka era o mais prático. Voo de 1h30 de Malé (capital das Maldivas). Achei interessante. Comprei minha passagem.

Na reta final das Maldivas, me bateu saudade de casa. Me arrependi de ir pro Sri Lanka, mas a troca das datas tava muito cara. Até o minuto final, tentei antecipar: sem sucesso. Ok, vou pro Sri Lanka, vai ser legal.

Um avião gigante da Sri Lankan Airlines no voo para Colombo (a capital), para meia dúzia de gato pingado. Fiquei com peninha daquele voo durar só 1:30h. Ficaria as 15 horas do voo longo nessa aeronave. Desembarquei, imigração, tudo certo tirando o inglês deles impossível de entender. Tinha combinado com o Hotel que eu reservei em Negombo, a 20 minutos do aeroporto, que alguém me buscaria. Saí do desembarque, um monte de gente segurando um monte de papel, com um monte de nome confuso. Dei uma volta no saguão olhando rápido pros nomes mas meio disfarçando que eu estava completamente perdida. Voltei pra porta, nada. Liguei pro Hotel. Nada. Troquei dinheiro, comprei chip, e um cara ficou me esperando querendo oferecer passeio. Eu não fazia ideia de onde ir nem do que fazer. Sentei na lojinha dele e escutei um milhão de coisas. Queria me cobrar 500 dólares por tudo. Não quis. O nome dele era Fernando, achei tão aleatório.

Mas pelo menos ele me levou no hotel, assumindo comigo de que eu havia tomado um bolo. Dezessete dólares o Nando me cobrou. Não sabia que no Sri Lanka era mão inglesa no trânsito. Aliás, eu não sabia absolutamente nada sobre o Sri Lanka. Ele tocou a campainha do Hotel, já era 1h da manhã. Vem um senhorzinho com uma cara de sono abrir bem mau humorado o portão. O hotel parecia um engenho antigo. Tudo escuro, mas lá dentro um senhor fofo chamado Bernard me atendeu, me deu água, perguntou se eu tinha fome e me mostrou o quarto. Quarto pequeno, ar condicionado, tudo certo. 

Tirei o dia seguinte para dormir muito e descansar. Não queria pensar em ninguém. Ali no hotel uns casais iam fazer foto de casamento, era bonito o visual. O café da manhã trazia frutas gostosas, as mesmas que comemos nas Maldivas, porque elas são exportadas para lá. Eu só tinha duas noites nesse hotel, mais para aproveitar o transfer que nunca aconteceu, já que meu próximo destino seria Arugam Bay, no outro oposto da ilha, lado leste que rolava um surf, apesar de eu não querer. Eram 8 horas de estrada, sinuosa, caminho lento. Saímos 8h da manhã e só chegamos umas 17h. Na estrada, vi elefante, vi centrinho confuso em Kandy, vi muito macaco. O motorista se chamava Teja (eu escrevo do jeito que entendo os nomes deles) e paramos duas vezes no caminho pra ir ao banheiro. Não tinha posto e banheiro como temos no Brasil. Diversas vezes ele olhava pra dentro de alguma casa ou estabelecimento, pedia pra eu usar o banheiro. Comprávamos alguma coisa no lugar só pra justificar. Os banheiros eram basicamente um cubículo sem luz, com aquele sanitário no chão que precisa agachar e eu nunca sei o lado certo. Um baldinho no chão deixa subentendido de que é pra encher com água da torneira e fazer sua própria descarga. Não levava o celular pro banheiro, não tinha lanterninha pra me iluminar nesse momento. Mas deu certo. Ali já começava a revelar a realidade do povo do Sri Lanka. Comprei um salgado que obviamente tinha pimenta. Tudo tem pimenta. Um elefante na estrada foi especial, que consegui descer e ir atrás dele. Entrou no mato, fui atrás. Assim que ele me viu, começou a correr desengonçado. Fofíssimos! Ainda na estrada, Teja me comprou uma folha de bananeira com mangas dentro cortadas, como se fosse batata-frita. Achei incrível!

Chegando no hotel em Arugam Bay, parecia um prédio com construção inacabada. Chamava Rise and Set, porque do terraço você conseguia ver os dois lados da baía e consequentemente o nascer e por do sol de um mesmo lugar. Oh, “rise and set”, entendeu? Razeen (esse escreve assim mesmo porque ele escreveu no meu celular) me atendeu, me explicou e sugeriu alguns lugares pra ir no Sri Lanka. Comi um Chicken Noodles no hotel mesmo e mandei mensagem pro Victor Bernardo, um super surfista e estiloso do Guarujá, ex-competidor que está morando na California. Melhor decisão que ele fez.

Lembra que eu falei que não queria surf por uns dias? Então, passou. Eu já estava com saudade. O Victor Bernardo coincidentemente estava no Sri Lanka, para uma produção e fui encontrá-lo num restaurante. Aluguei uma scooter e fui. É estranho chegar num lugar meio à noite, né? Perco a referência. Combinei de no dia seguinte encontrar o Victinho cedo pro surf, meio que com a galera da produção mesmo, ele havia dito que não tinha problema. Eu estava cansada ou ainda estava cansada, não sei. Não consegui.

Acordei com calma, dei uma volta na cidade. Arugam Bay era basicamente uma rua principal com restaurantes e hotéis, muito gringo em sua maioria israelenses e russos. Tentei achar uns picos de surf, mas sozinha e de scooter, perdi a noção se minha gasolina seria suficiente para chegar e voltar. Você tem que sair da estrada e ir pra estradinha de terra, onde não tem sinalização e referência alguma. Cheguei a ficar um tempo parada esperando um tuk tuk com prancha amarrada no teto passar, mas a verdade é que eu só via prancha de iniciante no teto e conclui que provavelmente o mar estava muito pequeno. Quando voltei pro hotel, perguntei pro Razeen sobre a autonomia do tanque e ele disse q eu poderia ir e voltar três ou quatro vezes que um tanque daria. No fim das contas, o mar tava marola e Victinho me poupou. Subi no terraço do hotel e voei o drone de lá para chegar nos elefantes. Tinham dois que se banhavam e comiam. Dava pra ver o pontinho preto de longe.

A folga dele veio e então fomos juntos pra água. Caramba! Me surpreendi! A baía realmente era pra escolinha e iniciante, mas lá na curva, pro outside, uma direitinha longa quebrava me fazendo lembrar do Rio Grande do Norte. Como me fez bem essa sessão! Um fundo de pedra muito amigável, realmente só formando um platô e um fundo sólido. Na água, havia uma fotógrafa italiana e só! Muitos surfistas vinham me perguntar meu contato e me dei conta de que meu nome é muito difícil em algumas línguas. Decidi então no mesmo dia criar um perfil chamado @travelsurfphotos , apenas para vender fotos enquanto eu estou viajando e pra pessoas me acharem. Também nesse dia, conheci uma família da Australia, cuja mãe estava lançando uma marca de chapéus para surfar. Eram os Abbott. Vendi as fotos da família e eles acabaram marcando uma sessão em Peanut Farm na minha última manhã. Voltando do surf, entrei direto no banho, com a roupa molhada da sessão. Quando saí do banho, minha varanda estava repleta de macacos!!! Uns 6, 7, 1.000! E morro de medo deles. Saíram pulando, que nem o Abu no filme do Aladin! Na hora de dormir, alguma coisa pingava em mim, o ar condicionado fazia barulho de bicho dentro. Tudo ótimo desde que eu não visse que bicho era!

Fui tomar café com Victinho e equipe de folga num lugar chamado Salty Swami’s. Swami’s são tipo aqueles sábios indianos, de turbante e barbicha. Lugar legal que o próprio Tommy Pierucki havia me indicado. Nesse papo de mesa, o Victinho mostrou uns videos da sessão da manhã e o produtor se interessou. Acho que sai cachorro desse mato. Cada vez mais vejo como é importante estar nos lugares pra coisas acontecerem . Temos esse medo da escassez e das coisas não acontecerem da forma que queremos, mas no fim é assim mesmo. Sem querer trabalhar, dois trabalhos engatilhados.

Chegamos a fazer mais uma sessão juntos, mas como Murphy prevê, o melhor dia de surf foi na folga da equipe e eu fui premiada com isso! Na volta, marquei uma massagem Ayurveda pra fazer , tomei meu banho e fui editar as imagens. Cometi o erro de não perguntar se era uma mulher ou homem que fazia. Não sou a pessoa da massagem, não faço questão nem no Rio nem em lugar nenhum. Estava marcada para as 15h. Atrasou 15 minutos. Atrasou mais 20. Desci pra sala, o rapaz pediu pra eu aguardar que ele ia tomar uma água. Eu toda compreensiva, “ok, take your time”. Me debrucei na maca, meio mesa de madeira pra esperar. Ele começou. Fiquei de short e tirei o top. Ele me cobriu com toalha. A cada fio de óleo - cheiroso por sinal - que ele passava, eu pensava no outro banho que teria que tomar. Eu estava sem relógio, mas mesmo assim tenho noção do tempo. Nos dedos do pé, ele colocava aqueles dedos gordos entre meus dedinhos e meu pé que já é todo seco, eu sentia rasgar. Que dor! Até então, a massagem, não tinha mostrado para que veio e como é Ayurveda, eu realmente não tinha referência alguma, era novo pra mim. Passou óleo na minha cabeça, cabelo e eu só pensava no banho que ia ser trabalhoso. Eu tava tão limpinha, devia ter ficado salgada mesmo. Estava com a toalha me tapando e virei de barriga pra cima, ainda me cobrindo. De repente sinto ele ultrapassando um pouco os limites do meu peito, um alertinha acendeu. De novo, sinto uma mão no meu peito. É muito difícil ser mulher em qualquer lugar desse planeta. A fêmea não tem paz! E quando passamos por uma situação dessa, mil pensamentos vem à cabeça: "eu entendi certo? Faz parte desse processo? Eu estou sendo injusta?" Como é difícil isso! A partir dali, eu tava muito nervosa. Nas minhas coxas, já senti que estava diferente. “O que eu iria falar?” Me veio uma força lá de dentro, senti que se não falasse alguma coisa, ia piorar a situação e estava só eu e esse homem numa sala, que não sabia se estava trancada ou não. Sentei, com o cabelo enorme do óleo e falei: “Finish! I’m not relaxed anymore!”. Ele se assustou, me virei, vesti minha blusa e peguei minhas coisas. E ele ainda me pediu pra escrever no caderninho de feedbacks, acredita? Subi muito atordoada pro quarto e daí em diante, eu mudei a viagem inteira. Que arrependimento ter marcado essa massagem e nem ter perguntado se era mulher. Que ingenuidade a minha!

Fui uma criança / adolescente que passou algumas vezes por esse tipo de situação e eu achei que não tinha traumas ou gatilhos nesse sentido. Toda mulher já passou. Acho que tudo veio à tona. Fui dormir com medo, chorosa, me sentindo uma merda, invadida, como Portugal chegando no Brasil com caravelas, canhões, sensível. Por sorte tenho pessoas com quem posso colocar pra fora. Que sentimento péssimo e destruidor. Nada que alguém fale ameniza isso. Não tinha passado por isso adulta! Um homem quando faz isso com uma mulher, ele não tem a menor ideia do que se passa do outro lado e o quão longo esse processo de curar pode ser, se ele conseguir ser. Homens, nunca façam isso com uma mulher! Na hora de dormir, tive que dormir para o lado dos pés, porque eu olhava por baixo da porta e via a luz. Fiquei com medo de ver pés ou de alguém tentar entrar no meu quarto. O hotel com cara de obra inacabada tava vazio, passei a ter medo de cruzar com qualquer pessoa no corredor. Destrancava a porta em silêncio, saía sem fazer barulho, acelerava o passo no corredor, já pronta pra gritar caso algo acontecesse.

Era um misto de sentimentos: queria ficar porque gostei de Arugam Bay, mas queria ir embora. Ali pra mim deu. Não queria ficar dentro do hotel também e peguei minha motoca pra passear e voar um pouco o drone pra espairecer. Com dificuldade, achei o pico de Elephant Rock. Vale lembrar que no caminho a areia foi ficando fofa demais e acabei caindo de moto. Igual a uma jaca! Não machucou, mas meu celular caiu e fui embora sem. Me dei conta quando cheguei e voltei ao lugar que caí para procurar. Tava soterrado. Voei o drone e fui numa barraquinha comprar algo pra beber. Pedi um coco e o cara da barraca, sentado numa mesinha bateu nela e falou “senta aqui”.  Quase que mandei ele pra todos os lugares de ruim desse planeta! A essa altura da viagem, minha vontade era mandar o dedo do meio pra todo mundo. Mas uma vez nas Maldivas, uma menina do grupo mandou o dedo do meio pra um português e ele estava com um guia local. Nunca vi um local ficar tão possesso. O dedo do meio pra eles, vindo de uma mulher então, é a coisa mais impraticável e que possa ofender alguém. Então, eu me controlo por aqui, mas penso comigo “fuck you”. Voltando, como assim senta aqui? Vou comprar meu coco e sair. Respondi em inglês “eu não quero sentar”. Os homens do Sri Lanka são muito abusados e passei a perceber isso a cada esquina. Eles perguntam o tempo inteiro se você é casada ou de onde você é. É insuportável. Não quero ser amiga de ninguém. E também me dei conta que eu tinha que falar o necessário e realmente ser grossa quando preciso. Me deu muita pena das mulheres dessa sociedade. Me surpreendi porque o país é um misto de religiões: muçulmana, budista, hindu. Não esperava. Li em vários relatos que o povo era muito legal! Na verdade, as mulheres pouco falam e os homens tem outras intenções.

Desci pra ir pro surf no dia seguinte e na recepção Razeen me perguntou: 

- A massagem foi boa? 
- good, good. Eu disse.


Ainda tenho que passar por isso... Conheci a família Abbott completa, a dos chapéus da Australia e a manhã foi muito especial. A família era muito bacana, Danny o pai, Nicole a mãe e três filhas! Encontrei-os às 9h no hotel deles e fui seguindo o motorista Jaya. Jaya costumava fazer trabalhos de transfer para amigos meus e cheguei a mandar mensagem pra ele. Ele corria na estrada e eu na minha Scooter corria junto. Eu era uma versão Sri Lanka do Debi e Loide, e quando o vento batia, parecia que eu ia voar igual um foguete! Chegamos em Peanut Farm e aprendi como chegar. Uma graça a praia! Me diverti muito na água. Encontramos o Victinho coincidentemente, que e se ofereceu para surfar com uns dos chapéus. A água do Sri Lanka tem uma temperatura muito gostosa e haviam me dito que tava com muita água viva. Senti duas na pele, uma me queimou atrás do joelho rasgando igual a uma planta com espinhos e bem feio por sinal, na hora em que o Danny estava numa onda! Dei um berro! Saí da água meio com pressa, pois era minha última manhã. Foi o tempo suficiente pra família Abbott tirar uma manga da bolsa e descascar. Ensinei minha technique de tirar um furinho da casca e chupar. A própria personificação do cão chupando manga, mas é a melhor forma na minha opinião, ainda sem precisar de faca e prato. Meu taxi estava marcado para 14h, precisava devolver a moto, almoçar, tomar um banho e partir. 

Tava seca pra procurar um lugar que li “Poke Bowl”, é a palavra mágica. Tava há dias sedenta por isso. Os lugares são tão colados um no outro e tão confuso, que eu via e desvia o lugar, parecia que eu passava uma vez, ele se escondia e eu nunca mais via.  Já no final da rua, achei o tal do Poke. Eram 12:20 já. Pedi o poke, que demorou uns 30 minutos. Pra minha surpresa, o tal do pote tinha ovo, molho rosé, o atum era quente, pimentão. Ou seja, era um bowl de tudo que tinha no lugar. Engoli a comida, tinha que devolver a moto 13h. Já eram 13:30. No lugar da moto, o responsável que tinha a chave do portão onde estava trancado meu passaporte que você tem que deixar de garantia não estava. Enquanto isso, uns 10 homens discutiam alguma coisa com policial que parecia não ser nada. Achei eles meio inúteis.
  Dez minutos, quinze, vinte. Nada do cara. Falei com aquele inglês primitivo que eu tinha pressa, fiz o rapaz ligar de novo pro amigo, que enfim chegou. Devolvi a moto, peguei o passaporte e ele me levou de tuk tuk pro hotel. Voei pro banho, desci com mala e tudo no silêncio porque não queria ajuda, principalmente do abusador. Fiquei na escada de fora do hotel esperando uns 30 minutos pelo taxi ainda. Razeen veio se despedir e fiquei muito na dúvida se falava o que aconteceu. De qualquer forma, tenho o WhatsApp dele e ainda cogito mandar uma mensagem depois que for embora. Meu taxi chegou, entrei e tchau. Rumo a Kandy. 

Mais cinco horas de viagem, numa serra sinuosa, verde, bonita e cheia de macacos. Por vezes na estrada paramos pra ver elefantes. Eu só contemplava, não queria fazer foto. Acho que tomei um banho de água fria em Arugam Bay. Jaya, o motorista, me ligou no caminho. Sabe pra quê? NADA. Isso que estou falando do comportamento dos homens aqui. Eles acham que tem intimidade. Troquei 2 palavras com ele no dia de Peanut Farm, segui o carro dele e essa foi nossa relação. Isso se repetiu uns dias pra frente e não atendi. Eu, hein?!
Chegamos em Kandy já tarde da noite, acho que lá pelas 20h. O hotel se chamava McLeod Inn e parecia casa de vovó, com cheiro de naftalina e tudo. Descia umas escadas e meu quarto ficava embaixo. Quarto apertado, duas camas de solteiro juntas, travesseiro tão alto que parecia uma bigorna. Tenho dores crônicas na cervical e ela piora muito quando vou com frequência pro mar, dependendo da intensidade das ondas e o quanto sustento o pescoço na sessão. Um travesseiro alto me mata, muitas vezes tendo até que dormir sem. No banheiro, aquele padrão Sri Lanka: chuveiro sem cortina, box ou nada, molhava o banheiro todo depois do banho. Esqueci minha escova de dente nas Maldivas e comprei uma num mercadinho de Negombo. Era tão dura que parecia uma vassoura piaçava. Tava com a boca toda machucada já. Parecia não ter lugar pra comer por perto, uma ladeira muito sinuosa onde só passei por pousadas. Só me restou dormir.
De manhã, entendi porque as janelas tinham grade: o lugar tava entupido de macacos. Eles fazem uma zona! Sobem nas coisas, fazem suas necessidades. Veio um cachorro e espantou todo mundo. Continuo com medo deles. Nicole da família dos Abbott me indicou uma experiência chamada Spice Walk para conhecer umas especiarias e ervas do Sri Lanka. Achei interessante e fui. Às 10h o tuk tuk e me buscou e fomos. Era longe o lugar. Não consegui gravar o nome do motorista e ele será o tuk tuk daqui pra frente porque passei o dia com ele. Ou metade do dia. A experiência era interessante, tinha um guia local chamado Agni, cujo inglês eu entendia com muita dificuldade. Me mostrou os pés de pimenta, noz moscada, abacaxis diferentes etc e dizia a propriedade de cada. Achei diferente! Uma das ervas, ele dizia que era bom pra emagrecer. Brinquei que eu tava precisando dessa, e acredita que o Agni me respondeu: “às vezes é necessário”. Mereço!
No final, me levava à cozinha de Nilu, onde preparamos uma lentilha com óleo de coco, com um blend de temperos deles, rotti, coco ralado à moda Sri Lanka. Tento ter muito cuidado com essas mulheres daqui, sinto que lhes falta acolhimento. Nilu perguntou se eu queria uma massagem. Que difícil isso. Era uma mulher, vamos lá. Tirei a blusa e ela fez uma massagem gostosinha, mas não consegui relaxar. Ela perguntou se eu queria a massagem na cabeça e aceitei. Mal sabia eu que ela colocaria mais óleo de coco no meu cabelo do que na panela que cozinhou. Só pensava no banho. Eu tava tão limpinha, ia sofrer pra tirar esse óleo todo. Quando terminou, passamos na farmacinha, comprei umas ervas e um tal de Doctor me sugeriu um bando de passeio, incluindo ir num centro de Ayurveda pra me consultar com o doutor de lá. Nem ferrando. Deixei ele falar, ele se comunicou com o tuk tuk que balançava a cabeça. Aqui eles balançam a cabeça parecendo cachorrinho de taxi, não dá pra saber se é sim ou não! Quando entrei no tuk tuk, falei: “não quero ir em centro ayurvédico nenhum. EU sei onde quero ir: museu do chá e uma fábrica de chá. E é só.”
Um trânsito caótico e do nada umas pessoas tocando música e um elefante com roupas. Fiz umas fotos rápidas mas depois vi com detalhes que o elefante tinha correntes no pescoço. Não gostei mais. O trânsito daqui é muito louco. O tuk tuk quase bateu uma vez numa freada brusca do carro da frente. As pessoas andam na contra mão, são milhares de tuk tuk loucos, buzinando, uma poluição sonora e no ar sem fim, porque os tuk tuks são abertos. Quando o ônibus buzinava, era um inferno. Paramos numa fábrica de chá do governo primeiro. O maquinário era antigo e achei pesado o trabalho ali. Só mulheres na linha de frente. Foi legal aprender sobre os tipos de chá, como funciona a colheita, a secagem, forno. Me lembrou muito o processo da castanha-do-Brasil na Amazônia que pude fotografar, inclusive a mesa de secagem, onde uma grade permite que as folhas recebam ar de baixo e de cima. De lá, cruzamos a cidade pra comprar o bilhete do trem para Ella no dia seguinte, cujo caminho dizem ser lindo. No caminho para o Museu do Chá, passamos em alguns templos mas não me sinto nem a vontade de entrar muito. Entrei uma vez, senti o cheirinho de incenso por todo o lugar, flores, e saí. Quem dirá fotografar, não consigo. No trânsito caótico, tudo parou completamente numa ladeira, já que estávamos em horário escolar. De repente, a caminho da frente perde o controle e vem de ré batendo no nosso tuk tuk. Triste fim. Minha mochila no chão com equipamento fotográfico ficou bem. De novo, aquele bando de homem debatendo sobre nada. Bateu, bateu, tira foto, polícia tava ali e tchau. Eles se juntam e sei lá o que tanto conversam. Esperamos num cantinho outro tuk tuk me buscar e seguimos pro Museu do Chá. Parece monótono esse tour dos chás mas achei muito produtivo e interessante. Sempre me questiono sobre o que aprendemos na escola que nem passa perto disso. Fotos, história, maquinaria, personagens. Foi bem legal. Aliás, sabia que o chá de saquinho foi criado sem querer? Na verdade, alguma empresa certa vez enviou amostras de chá em saquinhos de seda e quem recebeu achou que era pra colocar o saquinho na água quente. E assim o saquinho revolucionou a indústria do chá! Não me demorei muito no museu, porque o tuk tuk me esperava e eu não ficava confortável com isso. Claro que o tuk tuk perguntou se eu era casada e de onde eu era. previsível. De lá voltamos pro hotel e descobri uma pizza à lenha logo abaixo do hotel, descendo as escadas por trás. Devorei uma pizza inteira, estava faminta. Só tinha comido bananada que sempre levo nas viagens e chá. Me entupi de chá!

Quando eu chegava num destino, reservava a hospedagem do próximo. Estava fazendo pelo Booking mas sempre tinha que pagar em dinheiro quando chegava. Meu dinheiro em nota estava acabando e resolvi ver pelo Airbnb. Vi um lugar fofo em Ella, com vista pro mato, mesinha do lado de fora. Parecia um refúgio! Aproveitei e reservei também minha hospedagem em Mirissa, meu último destino da trip onde eu ficaria os três últimos dias.
O trem das onze era o meu! Achei sugestivo! Parava em uma cidade chamava Badulla mas eu nem trocava de trem. Parecia uma itinerante com mochila, mala e Pelican., minha mala bolada de equipamento. Meu trem era primeira classe e me achei chique! Realmente o caminho era bonito. Em algumas cidades, entrava um rapaz vendendo coisas de comer, amendoim, chá. A previsão de chegada era 17h. Entre um dos vagões era aberto e dava pra sair, tomar um vento, ver a vista. Tinha um senhor de camisa listrada vermelha que parece que tinha comprado aquele lugar em pé da porta. Não deixava outras pessoas verem. Quando fui até lá pra tentar fazer uma foto, o cara que cutuca pra olhar pro celular dele e fazer uma selfie. Tá louco, né? Respondi: "NO PHOTO!” Pra que o cara queria aquilo? Entende o lugar da mulher nessa sociedade? É muito doido. Somos sempre muito expostas. Aí óbvio, o cara perguntou de onde eu era e se eu era casada. Previsíveis e inconvenientes ao extremo. No caminho, cachoeiras, rios, muito verde, plantações de chá, pessoas colhendo, vilarejos, casas simples. Chegamos por volta das 18h na estação de Ella e logo que saí, aquela inconveniência de taxista oferecendo serviço, pegando na minha mala. Eu só conseguia gritar “Noooo, tuk tuk”! E escolhi o tuk tuk logo da minha frente.

Meu Airbnb era numa ladeira e não tinha endereço ou número. O tuk tuk ficou rodando tentando achar comigo até que ele disse que precisava ir. Respondi: "vc quer me deixar aqui no meio do nada e com mala?" Rapidinho ele se recolheu e achamos. Na hospedagem, literalmente por fora era um vistão e por dentro muito simples. Com alguns insetos. No quarto, uma cama, uma mesinha e pronto. Mas a moça que me recebeu era tão atenciosa e um amor que me fez eu me questionar sobre meus valores. De cara, pensei: vou avaliar mal o lugar no Airbnb. Mas nitidamente isso é tudo pra essa família. O marido, filho e ela reformaram a casinha e construíram em cima da casa da família. E a gente com essa coisa da concorrência, capitalismo, querer o melhor serviço o tempo todo, muitas vezes não percebe que precisamos desacelerar e o quanto podemos prejudicar outra família por essas exigências. Não preciso mentir na avaliação, mas dar nota baixa não acho necessário. Tava tudo limpinho, dá pra ver que é um lugar novo, até porque do lado da laje, tinham uns materiais de construção para um futuro quarto. Lendo o airbnb depois, vim a descobrir que era uma projeto chamado CeyExplorer que visava dar oportunidades para famílias que recebessem turistas em suas próprias casas e assim melhoravam a qualidade de vida delas. Entendi tudo. Ah, em todas as minhas hospedagens, eu tinha que economizar muito papel higiênico. Nem aqui, nem Maldivas, nem Omã eles usam papel higiênico. Ouvi dizer que é como uma ofensa, é como se “as mulheres se tocassem”, então elas usam só chuveirinho. Eu praticamente fazia origamis dos papéis higiênicos. Era a um rolo magro que eu tinha direito. Me lembrei de quando fui pra Bolívia que ia dobrando o papel higiênico até não conseguir mais usar. 

O cafe da manhã que me serviam dava pra umas três pessoas. Frutas, três sanduíches que eu achava ser um queijo quente e era na verdade de alho e cebola, 4 panquecas de coco e açúcar, ovo. Mas o café era especial: feito sem filtro. Assim: jogava o pó na caneca e colocava água quente. Terrível. Mas bebi. E não consegui comer esse banquete todo, claro. É contra os meus princípios desperdiçar comida, mas eu ia explodir.
Em Ella, eu só queria ir numa plantação de chá. O tuk tuk chegou lá embaixo da ladeira pra me buscar. Perguntei se ele queria ir sem mim, porque, né, sou pesadinha. Negou. No meio da ladeira, ele pediu pra eu descer. Tudo bem… Na primeira plantação de chás, uma van com uns 12 turistas parecia que tinha chegado num Safari. Já foram abordando as duas mulheres que trabalhavam, zero respeito. Uma das turistas pegou a cesta delas, colocou na cabeça, fez a foto. Inacreditável. Pedi pra irmos embora. Nitidamente, meu tuk tuk não sabia onde encontrar outra plantação sem ninguém e desisti. Pedi pra ver os Nove Arcos mesmo e me dei por contente. Passaram-se 2 horas e na volta, as moças da plantação trabalhavam em paz. Desci do tuk tuk e fui conversar com elas. Aquela comunicação complicada, eles falam a língua local e eu não consigo entender uma palavra, só stutsi (obrigada) e eka (um). Apontei pra folhinhas, ela me mostrou as folhas jovens, dando a entender que eram essas que elas colhiam. Aqui eu faço muito joinha com o dedo mas o que cativa mesmo elas é juntar as duas mãos, fazer a saudação e dizer stutsi. Depois de um tempo a gente rindo uma para as outras, tirei a câmera da mochila e pedi permissão para fazer umas fotos delas. Elas balançaram a cabeça permitindo. De repente, dois caras chegaram, falando que eles iam me acompanhar, e começaram a me dar ordem. Falei em inglês: "eu não preciso de vocês, estou bem com elas aqui e não preciso de você me falando o que fazer”. Os dois saíram, quando olhei pra trás elas estavam rindo. Fiquei pensando o quanto elas se sentem presas. Os dois homens com roupas sociais, nitidamente “donos”. Discretamente deixei um dinheirinho pra elas. Me senti bem de ter dado atenção pra elas. Longe das fotos que eu queria, mas fiquei feliz que fiz alguém se sentir valorizado. Foi mais sobre elas do que sobre mim. A fotografia pra mim sempre é. Almocei um espaguete à carbonara porque o tempero daqui já não me desce. Não consigo nem sentir o cheiro mais. À noite, antes de dormir, falei com uma amigona minha, que perguntou: “Aí tem Bed Bug?” É um bichinho que se abriga em colchão velho e que coça demais. Nunca peguei essa ziczira mas esse alerta dela foi suficiente pra acabar com todas as minhas noites de sono. Qualquer coceirinha, eu acendia a luz pra ver se era o bicho. Às vezes é melhor não saber de certas coisas.
Mais um dia passado - ou menos um dia pra ir embora - e o próximo destino era o último da lista: Mirissa. Desci de tuk tuk até o ponto de taxi e o motorista com a boca toda vermelha de mascar Betel Nut, uma mistura local com Noz de Areca, chegou numa van. O cara dirigia muito mal. Acelerava e freava muito bruscamente. Fui ficando mais enjoada que barco. Até que falei, porque agora eu falo mesmo, cade vez com menos palavras: “slow please, not comfortable. You break too much”. Ele balançou a cabecinha. É realmente desconfortável o trânsito daqui. Eles ultrapassam muito em uma pista só e buzinam a cada ultrapassagem. Imaginou?
O cara veio tão rápido que cheguei uma hora antes do previsto em Mirissa. Lugar pacato, a mãe da família me recebeu. Me fez preencher um caderninho com meus dados, me mandou pagar e disse que já estava pago pelo Airbnb. Me mostrou meu quarto, mandou deixar meu tênis num cantinho e entrei. Elas ficam olhando pro meu rosto e não saem. Fica aquele sensação “ok, thank you” e eles não viram as costas. Entrei no quarto. Ela voltou. “Fecha a porta”. Coloquei meu tênis e Birken em cima da mureta porque vi que no lugar tinha um labralata filhote e já conseguia visualizar ele com minha sandália na boca. Acredita que a mama colocou tudo no chão? Tava quase perguntando se era permitido respirar. Saí para comer num lugar que desde Arugam Bay eu procurava: The Avo Club! Tinha tudo pra ser interessante e eu tava seca numa avotoast. Já era fim de tarde e preferi um bowl de atum. Não consigo definitivamente mais sentir o cheiro desse tempero daqui. Lugar fofo, atendimento bom, 100% de homens trabalhando no recinto. É impressionante como só vi mulher nas fábricas e plantações de chá.
De novo, lá estava eu de motoca. Aqui, quando você menos espera, tá dirigindo igual a eles. A contramão é normal. É até estressante, porque não dá pra dirigir olhando a vista, porque tem que prestar atenção na minha pista e na contramão pra desviar. O trânsito é agressivo não espero menos de uma sociedade tão dominada por homens.

Claramente é a temporada de Arugam Bay, até novembro. Depois tudo migra pro sul de novembro a abril. Inclusive, muitos cafés e lojas que vi em Arugam Bay, tem filial na região de Weligama. Ou seja, o sul está meio fantasma por agora.
O lugar que eu mais queria conhecer era o local dos Stilt Fishermen, um modo artesanal de pesca e tradicional entre as gerações no Sri Lanka. Os pescadores se equilibram em pedaço de pau no mar e com muita paciência pegam de 4 a 5 kg de peixe nas altas estações. Essa tradição começou na Segunda Guerra, por falta de barcos e outros utensílios pra pesca e passa de pai pra filho. Mais do que por dinheiro, eles mantem a tradição viva. No entanto, Iohann, o filho da mama da minha hospedagem me disse que eles não pescam mais assim. Na verdade, eles continuam no mesmo lugar, em Boggala ou Ahangama esperando por algum turista e ali vão perfumar. Recebem mais por isso do que pela pesca. Acabaram criando uma “experiência” para quem vem. E ao invés do trabalho braçal num sol escaldante, eles criaram um novo tipo de serviço. Quem sou eu para julgar se não fico embaixo do sol pescando, mas acho muito superficial essa forma de turismo e isso sim me incomoda. Vejo cada vez mais esse comportamento de mostrar que se esteve num lugar, postar e não viver a experiência de fato. O mundo muda, né? Um pescador solitário pescava nos paus da esquerda e à direita, uns turistas faziam as fotos deles. Achei que mesmo aquele pescador solitário, era uma história pra se contar, exatamente quando comparado com a foto clássica de Steve McCurry, feita em 2001.
Só me restava partir e comprar meu milho cozido de beira de estrada que vem num saco plástico. Queria muito falar pra eles cozinharem na espiga, mas a comunicação de fato não rola. “eka corn”, era o que consegui.
Minha viagem ia chegando ao fim e num balanço geral, é sempre muito bom conhecer uma cultura nova. Acho que nada melhor do que vermos com os próprios olhos para criarmos uma opinião. Esse fato do comportamento dos homens foi o que mais me incomodou, a ponto de muitas vezes ofuscar o que via de positivo durante essas semanas. O turismo no mundo também mudou muito com o combo redes sociais e pós-pandemia. Eu realmente não sei onde a humanidade vai parar. Mas de uma coisa eu sei: saudades de conhecer os lugares através do surf. Vim pro Sri Lanka para diferenciar minhas viagens um pouco disso e no fim das contas, é o que de fato dá sentido pra minha vida. Eu amo conectar com pessoas, ouvir histórias, conversar, mas sinto que aqui deixei de ser eu mesma e isso dói. Conhecer um lugar pelo mar me faz muitas vezes não vivenciar algumas situações desagradáveis e principalmente: buscar cada vez lugares com menos pessoas!